Friday, 4 October 2019

A Síndrome de Sherwood aplicada contra o independentismo catalão

Doc.cat - publicações investigativas da Catalunha


23 de outubro de 2019
Aqui Catalunha


Em 2009, o então Inspetor de Polícia dos Mossos d’Esquadra, David Piqué i Batallé, apresentou um trabalho acadêmico de mestrado sobre políticas públicas de segurança aplicadas ao combate aos movimentos okupa / antissistema no distrito de Gràcia (Barcelona). Esses movimentos eram considerados como fatores de risco para a convivência e sério problema de ordem pública e, portanto, eram criminalizados. No texto acadêmico, David Piqué faz referências à história militar e a ilustres teóricos do militarismo, como Sun Tzu (autor da obra de estratégia militar A Arte da Guerra) e o samurai Miyamoto Musashi para argumentar o modo de atuação do poder policial para estabelecer o controle. É aqui que começamos a falar sobre a Síndrome de Sherwood, o subtítulo do trabalho. Em poucas palavras: o objetivo de David Piqué era falar da prática de permitir excessos e provocações aos manifestantes como forma de aumentar o grau de violência de um protesto ou manifestação. Mas… Por qual motivo foi escolhido o nome Sherwood, e como está ligado ao combate aos movimentos okupa e, principalmente, de que forma está relacionado às táticas policiais de combate às manifestações independentistas, especialmente as ocorridas desde 14 de outubro? Esse método foi explicado, nessa terça-feira, no programa Més 324, da TV3. Porém, o Aqui Catalunha apresenta uma explicação mais detalhada sobre tudo que baseia esse método.

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Sherwood e o mito de Robin Hood

Nos contos ingleses, Sherwood era o nome da floresta onde Robin Hood e seus amigos se refugiavam. Nessas histórias, o Príncipe dos Ladrões era conhecido por roubar da nobreza para distribuir aos pobres, atitudes que respondiam à sua missão de lutar contra a opressão e o poder estabelecido. É exatamente a partir desse ponto que começaremos a destrinchar o pensamento de David Piqué. Como havíamos mencionado, seu trabalho acadêmico consistiu em explicar o fenômeno okupa no distrito de Gràcia. Do que se tratava esse fenômeno? Na página 4 da publicação, Piqué escreve: “O movimento okupa é um protesto coletivo que propõe uma via alternativa à sociedade capitalista, que busca desenvolver um espírito de coletividade e realizar uma série de atividades sociais e culturais próprias, fora das leis estabelecidas“. Esse trecho teve como referência o Dossiê da Assembleia de Okupas de Barcelona, publicado na revista La Lletra A, em 1997.

Mais à frente, na página seguinte, Piqué escreve: “De fato, ocupar uma residência vazia pela necessidade de ter um teto é algo que sempre aconteceu. O que faz desse movimento uma coisa diferente, além de sua grafia, é que a ‘okupação’ tem o objetivo de fazer uma denúncia política e pública, que busca mudanças na organização social, e que usurpa uma residência para desenvolver um outro tipo de atividade além do mero objetivo de ter um teto“.

Conforme explicado em uma publicação do portal Núvol, intitulada ‘O que os Mossos d’Esquadra leem?’, do ano de 2013, o trabalho de David Piqué é um “relatório contra Hobin Hood”. Essa descrição nos permite chegar ao início da explicação sobre a Síndrome de Sherwood, inédita em língua portuguesa.

As formas de combate e controle

No capítulo 6 de seu trabalho, intitulado ‘Políticas públicas disponíveis’, e que tem como subtítulo ‘Da estratégia à tática’, David Piqué nos apresenta diferentes modelos de ações policiais baseados em célebres estrategistas da guerra. Mais precisamente, os quatro modelos / métodos apresentados são o de Carl Von Clausewitz (general e pensador militar do Reino da Prússia), de Sun Tzu, de Miyamoto Mushasi e do imperador e líder militar Júlio César.
Carl Von Clausewitz: defendia que o rival fosse vencido, e pronto. Não havia necessidade de que fosse humilhado.
Sun Tzu: ganhar sem combater.
Miyamoto Mushasi: para ele, as tropas eram como espadas, feitas para a guerra; o inimigo deveria ser exterminado, como castigo, como exemplo e para evitar a vingança.
Júlio César: dividir para conquistar.

Previamente à explicação detalhada sobre cada método, David Piqué deixa claro que embora “as práticas militares e policiais não sejam idênticas, têm elementos em comum na execução de qualquer plano estratégico que, como o planejamento, a inteligência, a psicologia e o uso controlado da força, junto com a propaganda e o uso adequado do direito disponível, faz com que, por meio dos métodos, se possa justificar ou explicar melhor o plano de ação”.

Em seguida, no capítulo 7, o autor apresenta um plano de ação para combater o movimento okupa. O plano é dividido em quatro fases:

1ª – influenciar a opinião pública com a criação de um clima de rejeição aos okupes;

2ª – geração de debate político sobre a ocupação de residências;

3ª – consolidar na opinião pública a percepção de que o movimento okupa está intimamente relacionado ao vandalismo;

4ª – literalmente, atacar o núcleo de Sherwood e deter os possíveis Robin Hoods.

Na segunda fase descrita no trabalho de David Piqué, o objetivo, além da criação de um forte debate político sobre a ocupação ilegal, é “forçar o aparecimento de posturas extremas que vão desde a criminalização das usurpações até uma punição aos proprietários que mantenham uma residência desocupada”. Tudo isso servirá para que uma modificação legislativa aconteça, o que marca a terceira fase, a do aparecimento de uma nova norma. A última fase é a do combate aos okupes que resistem à mudança legislativa sobre as ocupações ilegais. É nessa fase que ocorrem as “detenções seletivas dos líderes para que esses sejam imputados por delitos comuns”.

Qual dos modelos de ataque a Sherwood melhor se aplica ao combate às manifestações independentistas pós-sentença?

Vejamos em uma linha do tempo regressiva. No dia 20 de outubro, o Ministro de Interior do governo espanhol, Fernando Grande-Marlaska, afirmou que “o que há na Catalunha é um problema estritamente de ordem pública”. Nove dias antes, em discurso prévio à comemoração do Dia da Hispanidade, o chefe da Guarda Civil na Catalunha ameaçou a reação civil que acontecesse após o anúncio da sentença do Tribunal Supremo espanhol contra os líderes políticos e civis catalães. Em 30 de setembro, o líder do governo espanhol, Pedro Sánchez, que se recusa a dialogar com o presidente da Catalunha, fez nova ameaça ao governo catalão com uma nova suspensão da Generalitat de Catalunya caso “o independentismo voltar a passar dos limites do Estatuto [de autonomia catalã]”, a fim de garantir a “convivência e integridade territorial”. A ameaça de Sánchez foi feita dias após a detenção de nove cidadãos independentistas, ligados aos Comitês de Defesa da República, e acusados de “planejamento de ações terroristas” como resposta à sentença. Sete deles foram presos, mas nenhuma prova sólida para a criminalização foi apresentada. Nesse período, a imprensa espanhola acusou a irmã de Puigdemont de estar envolvida em “planos de assalto ao Parlamento da Catalunha” junto aos independentistas que foram enviados à prisão. A acusação foi severamente e claramente desmentida.

É fácil, com a exposição desses fatos, entender melhor o plano de ação descrito pelo autor do trabalho de mestrado analisado neste texto. Aqui, o independentismo catalão é o movimento okupa. O governo espanhol se encarrega de criminalizá-lo, e de associá-lo ao terrorismo (especialmente por meio de representantes afins no Parlamento da Catalunha, como Carlos Carrizosa, que acusou o presidente da Catalunha, Quim Torra, de apoiar “ações terroristas”). Mais ameaças são feitas e, finalmente, temos algo (a sentença) que ativa os fortes protestos. Chegamos, então, à percepção de Marlaska sobre “o problema de ordem pública”, plenamente consolidado na opinião pública e política espanholas, e razão suficiente para o ataque a Sherwood por meio do método de Miyamoto Mushasi. Em que consiste esse método?

Em nossa página no Facebook, publicamos diversos vídeos que mostram os ataques policiais contra manifestantes. Ataques injustificáveis. Seria produto do nervosismo? Logicamente, os momentos de fortes protestos são um grande teste psicológico, mas não justificam a covardia vista nos vídeos. David Piqué, em sua análise sobre o método de Miyamoto Mushasi, escreve na página 28: “Inclusive se a concentração ou manifestação não for muito violenta, se pode chegar a provocar um pouco, com detenções pouco justificadas e nada pacíficas, para esquentar o ambiente. Também podem ser feitas batidas preventivas nos lugares onde habitualmente se encontram pessoas próximas à ideologia de quem convocou a manifestação, com a desculpa de buscar drogas ou o que for necessário”. Revejam os vídeos que publicamos, especialmente as passagens em que policiais agridem pessoas que estão com a bandeira independentista catalão. A associação com o parágrafo apresentado pelo autor é inegável.

O autor prossegue: “A batida estará especialmente mal feita e com trato humilhante para provocar ainda mais, se necessário. A consequência previsível desses comportamentos prévios e o desenho do dispositivo policial é uma batalha campal”.

“Além da estratégia prévia, quando algum grupo descontrolado inicia as ações violentas, as unidades policiais não se movem, e quando a violência começa a ser generalizada, a atuação policial recua de propósito até que os danos produzidos sejam socialmente inaceitáveis. Então, começam os ataques policiais, que em nenhum momento querem ser dissimulados. Vão diretamente contra os manifestantes, já considerados como vândalos, que são atacados com suficiente velocidade para que não haja tempo de fuga e se provoque o confronto físico. Nesse estágio, os manifestantes atacam os policiais com tudo que têm, realmente estão se defendendo, mas não parece. Foram encurralados. A violência entre agentes e manifestantes se descontrola. É o que querem: começam a aparecer vítimas inocentes. As que fugiram dos confrontos acabam encontrando o resto das unidades policiais, que lhe bloqueiam o caminho e não fazem detenções. A dispersão não é voluntária, é à base de defesa (cassetete), e qualquer indício de resistência é respondida com contundência exagerada e detenções massivas”.

“Essa tática não é exclusiva de regimes totalitários; também acontece com muita frequência em muitas democracias ocidentais. Talvez seja devido a dois fatores: uma estratégia política que não considera outra opção que não seja a visão do problema como um conflito de ordem pública; deixa-se o controle das ruas e dos manifestantes / ativistas nas mãos de unidades policiais pouco disciplinadas, vingativas e provocadoras”.

Considerações finais

Finalizamos esta produção com duas observações. De acordo com informações publicadas no dia 21 de outubro pelo programa Tot es mou, da TV3, 200 pessoas haviam sido detidas durante a primeira semana de protestos, e 590 haviam sido feridas.

Finalmente, sugerimos que leiam este texto com a página de nossos vídeos no Facebook aberta. Leiam e assistam. Voltem a ler e assistam novamente. A produção desta análise foi possível graças ao vídeo publicado por Més 324, mas percebemos que faltava nele algo maior, que ajudasse os falantes de língua portuguesa a entender a complexidade do atual momento de conflito político entre Catalunha e Espanha, especialmente este período de intensas manifestações. Nossas publicações previamente feitas favorecem a visualização do método policial que melhor caracteriza a Síndrome de Sherwood. Releiam, também, nossa publicação sobre como a imprensa brasileira tratou os protestos na Catalunha.

Quem quiser ler o trabalho acadêmico, clique aqui.

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